Filhos da ditadura: orgulho e dor marcam gerações de quem resistiu ao período
As novas gerações precisam ouvir repetidamente as histórias – e seus detalhes – para não perder a democracia de vista, dizem os filhos dos militantes torturados no regime militar
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Tiveram, muitas vezes no auge de sua inocência, de ouvir (e ver) histórias da crueldade. Conhecer o sofrimento daqueles que deveriam ser heróis por os protegerem de monstros imaginários e que terminaram vivendo pesadelos reais, afastados da família. A geração que herdou a história de lutas dos pais, de modo geral, relembra o passado com orgulho. O amadurecimento fez com que aqueles pais fossem mais do que heróis dos próprios filhos.
Muitos, para além do romantismo da luta, sofrem ainda as consequências de violências, separações, rupturas precoces. Em comum, os filhos de quem resistiu ao regime instaurado pelos militares no País, após a deposição do presidente João Goulart em 1964, carregam uma experiência política e histórica diferente da maioria dos brasileiros.
O iG conversou com algumas pessoas que, desde muito pequenos, tiveram suas histórias transformadas pela ditadura. Todos foram unânimes em falar de orgulho e necessidade de manter essa história viva.
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Privação da convivência

Padilha acredita que, mais do que isso, a mãe tentava lhe ensinar conceitos, como o enfrentamento. “Essa experiência foi decisiva para construir o espírito democrático na minha identidade. Isso gerou minha consciência de defesa da justiça social, de combate à desigualdade social. Faz parte da minha formação o gosto e a validade da democracia, da liberdade de imprensa, do respeito às diferentes opiniões”, define.
Os “tios da resistência”, companheiros dos pais que ajudavam a trazer e mandar presentes, fitas com conversas gravadas (para que pai e filho reconhecessem a voz um do outro) e cartas. Anivaldo, seu pai, era militante da causa cristã e fora preso em 1970. Depois de dez 10 meses preso, passou mais de dez anos exilado. Nos Estados Unidos, casou-se novamente e teve dois filhos que também se correspondiam com o irmão mais velho por cartas e fitas. “Esses tios conviviam muito conosco, traziam informações seguras do meu pai. Tenho muito carinho por eles”, diz.
O primeiro abraço físico só ocorreu em 1979. Alexandre Padilha já tinha 8 anos. O ex-ministro garante que não guarda mágoas do período, mas defende que as “histórias da ditadura” sejam concretas. Ele lembra que, na escola, ele repetia sua história – de separação dos pais, exílio, distância – e sua professora dizia que ele estava mentindo. As experiências pareciam loucura até aos olhos de quem viveu o período.
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“Nem todo mundo viveu de forma clara essas realidades. Construir a memória, sobretudo entre as novas gerações, é muito importante. É fazer com que as pessoas continuem preferindo o ruído de diversas opiniões do que o silêncio da ditadura”, ressalta. Ter vivido a ditadura dessa forma, ele garante, o fez gostar da política, o transformou. “Para mim, eles foram verdadeiros heróis. Meus pais e todos aqueles tios da resistência também”, garante.
Perdas e buscas
A ditadura militar marcou toda a família de Christopher Goulart, de 37 anos. Neto do ex-presidente João Goulart, deposto após o golpe de 1964, ele nasceu apenas 2 meses antes de o avô morrer. É o único neto que ele conheceu. Um dos anistiados mais jovens do País. O período de perseguição à família marcou sua vida de inúmeras formas: a falta do avô, as constantes mudanças de casa, as três nacionalidades.

As visitas a São Borja, cidade do avô, se tornaram uma constante. Ele gosta. “Tem uma coisa peculiar na minha história, diretamente ou indiretamente, não existe um dia que eu não tenha ouvido falar o nome do meu avô. Carrego a idade do falecimento dele. Apesar de não ter convivido com ele, é uma figura muito presente na minha vida”, admite. Carregar a responsabilidade da herança, ele diz, não é fácil. Mas ele quer assumir os riscos.
Hoje secretário municipal de Assistência Social em Porto Alegre, o advogado conta que o peso da história familiar foi sentido na adolescência. A contestação e a popularidade do avô ficaram mais claras. Os conceitos repetidos nas conversas familiares e de amigos – deposição, golpe, exílio – ficaram mais claros. “Eu acho que hoje sou o que estou mais engajado politicamente, vivo o meio político, estou fazendo política”, diz.
Rupturas e reconstruções
Márcia Losada, 37 anos, tem recordações prazerosas do pátio, dos jardins e dos bichos bem cuidados do local onde se encontrava com o pai ainda bem pequenina. A inocência infantil – e a “sorte” de poder visitar o pai preso em um seminário – a pouparam de entender que o pai não estava ali porque queria e de conhecer o presídio onde passou anos antes. A irmã mais velha, filha de outra mãe que frequentou a prisão, tem lembranças dolorosas.

Professora alfabetizadora, Márcia conta que já participou ativamente do movimento estudantil. Hoje, no entanto, “milita” na escola. Tenta mostrar que essa história precisa ser esclarecida de forma correta aos alunos. “Ela é necessária para compreender a história do Brasil. Eu não penso exatamente como o meu pai, que tem uma visão mais dura. Mas nós aprendemos um com o outro e isso é importante para outras gerações”, defende.
Há cerca de dois anos, Márcia começou a ajudar o pai a elaborar materiais para apresentações. As histórias contadas em capítulos fora de ordem na infância ganharam cronologia, detalhes. “As palavras vão ganhando outro peso. Quando penso no quanto meu pai sofreu, me pergunto como ele conseguiu aguentar tanta coisa. Só recentemente ele passou a admitir tudo que o fez sofrer: não ver minha irmã completar 15 anos, não me ver nascer. Dói muito”, ela relata.
O orgulho da família e a certeza de sua força são esperança em mais um momento difícil: Losada foi atropelado recentemente. Ele participaria de uma reunião na Câmara de Vereadores de Porto Alegre sobre eventos relacionados aos 50 anos do golpe. Hospitalizado em uma situação delicada, a família se concentra na força que ele teve para enfrentar a ditadura. “Ele vai sair dessa também”, emociona-se.
Lembranças reconstruídas
Carlos Lisboa Travassos não possui lembranças do pai. Pelo menos, não as próprias. “Eu o conheci muito pouco. Ele faleceu quando eu tinha 2 anos. Tenho lembranças reconstruídas pela minha imaginação, pelo que me contaram dele”, afirma o geógrafo de 34 anos. Filho de Luiz Travassos, que presidiu a União Nacional dos Estudantes (UNE) entre os anos de 1967 e 1969, e Marijane Lisboa, socióloga, professora e líder estudantil à época, Carlos cresceu ouvindo histórias sobre o carisma do pai, as lutas do pai e da mãe, as lições sobre o período difícil que viveram.

Além de orgulho, Carlos sentiu, ainda muito novo, o mesmo interesse dos pais em conhecer mais sobre a política, entender a história do próprio país, os contextos sociais em que vivia. Nas conversas com os amigos dos pais – que passaram um bom tempo ajudando a manter viva a memória do falecido e a “curiosidade do órfão” nutrida – descobriu uma pessoa que lamentou não ter conhecido melhor. “Sempre soube o que aconteceu a eles. Entendi o que era morte e o valor da vida ainda muito cedo”, conta.
Sempre muito atuante politicamente, a mãe de Carlos levava os filhos para comitês onde as eleições diretas eram discutidas, as primeiras campanhas desenhadas. Com paciência e didática, ele conta, a mãe explicava fenômenos históricos e sociais. Criticava o mundo e tornava ele a irmã cidadãos mais conscientes. “A ditadura foi um assunto natural em casa. As primeiras reações que me lembro foram de raiva, injustiça. Aquele sentimento infantil de vingança. Depois fui compreendendo que meus pais mesmos eram contra a violência”, recorda.
De uma experiência mais próxima com as políticas partidárias, Carlos partiu para pensar as políticas públicas. Encontrou formas diferentes de manter viva a memória daquele tempo. Estuda – e coordena – o trabalho da Funai com tribos isoladas. A ditadura aparece sempre no cotidiano. “Esses povos foram usados na ditadura. Ainda desenterramos arquivos escondidos. É importante enxergar que há trechos da história que se repetem”, comenta.
O geógrafo gostaria que as lembranças e entendimentos sobre o período fossem mais disseminadas. “Acho que a educação deveria promover mais reflexões políticas sobre esse período, que ainda está distante de muita gente”, afirma.
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